domingo, 5 de fevereiro de 2012

A MULHER PRANCHA


A MULHER PRANCHA

Eu tinha um amigo que namorava uma graça de garota, super gente fina, mas que não abria a boca. A gente saia junto, ia nas festas, e ela entrava muda e saia calada. O cara era super extrovertido, contava mil histórias, socializava geral, e ela ficava quietinha na dela. Acabou ganhando o bem humorado apelido de mulher abajur, a que você leva pros lugares, deixa ligada num cantinho, depois desliga e vai embora. A mulher prancha é a versão surf caricata da mulher abajur.
Explico. As namoradas chegavam todas lindinhas e cheias de boa vontade, amarradonas só de estar ali. Praia, sol, surf, som. Vibe boa. Astral, pôr do sol, ceu estrelado. Quase um sonho. Até aí tudo lindo. Mas eis que as esperas foram ficando cada vez mais longas. O tradicional aluguel no estacionamento, um verdadeiro martírio que não acabava nunca e ela mofando, rezando pra conversa acabar logo. A mosquitada, o carro apertado lotado de pranchas, a carona pros brothers, o papo monotemático, os códigos, as senhas, as gírias. Sem falar nos chatíssimos filmes de surf, sábado a noite, com todo mundo urrando. E o resultado é que muitas tombaram pelo caminho, pularam fora, pediram pra sair.
Fui muito próximo de um casal emblemático no surf no meados  da década de 80. Enquanto eu não tinha nem beijado ainda, o cara já namorava firme uma gata linda, gente fina e parceirona. Ela ia junto em todos os campeonatos e foi instrumental nas suas muitas vitórias, sempre apoiando e fazendo companhia. Eu, e a turma, adolescentes, sonhávamos em ter uma dessas também. Mas um belo dia ela torrou a paciência, fez as malas, se mudou pra Miami, foi trabalhar num banco, e acho que nunca mais nem pisou numa praia. Fiquei anos sem entender o porquê daquele sumiço, e de tempos em tempos eu pensava sobre o assunto. Depois eu saquei. Ela não tinha vocação pra mulher prancha, e por isso se encheu
Outro dia descobri que uma dupla que eu considerava perfeita tinha se convertido, uma década mais tarde, num casal composto por um surfista solitário e uma mulher completamente traumatizada com a estrada do surf. Era um tal de navegar sem bússola em traineiras perdidas pelo arquipélago indonesiano. De rodar em estradas lunares numa moto caindo aos pedaços carregando prancha, equipamento fotográfico, mochila. De dormir em barraco, em cabana, em tenda, qualquer coisa, desde que de frente pro surf. O problema é que a namorada não surfava. Aliás, nem nadar, nadava. Resultado? Falou em surf trip ela quase desmaia. Mencionou Indonésia, ela só falta fazer o sinal da cruz. Deu, passou, não, muito obrigado. Nunca mais. Mas em retrospecto, bem que o cara judiou da bichinha, abusou.
Na real, o mais comum é a mulher aturar um tempo e contar os minutos até conseguir tirar o cara dessa trilha. Essas, de mulher prancha não têm nada. Suas agendas são claras. O surf não passa de um entrave ao grande plano doméstico de procriar e almoçar na casa da mamãe aos domingos. Muito surfista cede à pressão feminina e vira ex. Muito mesmo. Essa coluna não fala dessas dominadoras, mas daquelas que aceitaram se relacionar com caras que preferem perder a mulher a deixar que qualquer coisa fique entre eles e o surf. Daquelas que, na melhor das intenções (pra eles é lógico), aceitaram entrar pro quiver.
Essa chama inesgotável do surf, que nos deixa eternamente adolescentes, é uma energia vibrante e bonita. Se a mulher sacar que é justamente isso uma das coisas que tornam o seu cara uma pessoa diferente e interessante, e aceitar seu destino enquanto prancha, e se o cara valorizar a parceira que abre mão de muito pra seguir nessa viagem com ele, e não abusar, a relação tem tudo pra dar certo. Parece conto de fadas, mas é a vida mesmo. Não há nada de mal em ser uma mulher prancha, desde que a própria não se sinta violentada. Nessas décadas de surf, conheçi muitas histórias assim com final feliz, e quase todas acabaram dando em pranchinhas de surf fazendo castelos de areia e querendo sorvete. E o mais legal é que os olhos dos maridos continuaram a brilhar intensamente. Bem diferente dos que se deixaram domesticar. O surf tem esse poder.


A carona básica para um dia de surf


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